39°C. Isso não era bom, nada bom. O crânio parecia inchado, endurecido, querendo irromper de dentro. Os olhos eram empurrados das suas cavidades, o suor brotava da pele. Que merda morar sozinha. Tentou alcançar o telefone, mas se distraiu com o movimento da sua mão, os dedos magros pareciam passarinhos sobrevoando o chão de piso laminado. Riu um riso mole e fúnebre. As maçãs do rosto protestaram, então ela tocou-as, acariciando a pele quente. Eu poderia fritar um ovo no meu rosto. Riu aquele mesmo riso. Voltou a olhar os passaredos, dedorinhos, riu riu riu. Que jogo bestinha. Bestinha é uma palavra engraçada. Riu riu, as maçãs do rosto protestaram de novo. Tudo bem queridas, vou manter a face imóvel. Esticou o braço e finalmente alcançou o telefone. Discou uma vez, errou os números. Acertou na segunda e teria comemorado se não estivesse se sentindo tão miserável.
- Alô?
- Mãe? É a Clara. Eu... Eu estava lembrando de quando a gente empinava pipa, sabe? Acabei de ver o amarelo do termômetro e o vermelho da minha unha e tudo se combinou, entendeu? Tudo. Era muito bom aquele tempo.
- Você já se medicou, filha?
- Acho que não tem remédio aqui...
- Já estou indo aí, não se cubra demais.
Tutututututututu e ouviu o som até enjoar. Parecia até bonito, mesmo dando a sensação de abandono de sempre.
E dali a vinte minutos chegou a mãe com a sacolinha da farmácia. Clara sorriu levemente. Aquela sacola plástica parecia o maior gesto de carinho do mundo. A pipa amarela e vermelha. O pacote de dois quilos de bala de goma.
- Toma aqui esse remédio deve ajudar com a temperatura... Ah filha, você está queimando!
- É, deve ter sido o sereno ou coisa parecida...
- Não é hora de tirar sarro. Vou buscar um copo d'água.
- Não é sarro mãe, ai. Trouxe pra dor de cabeça também?
- Trouxe.
Um comprimido, dois comprimidos, água água água. Veio a mãe com uma toalha molhada, colocou na testa de Clara.
- Você tinha remédios aqui, sabia?
- É?
- No armário da cozinha, como da última vez...
- Eu te incomodei né? Que idiotice, 26 anos nessa cara suada e não lembro de onde guardei os remédios no mês passado... Mas eu bem que lembrei da pipa hoje.
- Não incomodou. Mas eu acho que...
- Oi?
- Se você quiser, posso ficar por aqui essa noite. Você está precisando de cuidado.
- É?
- Sim.
- Obrigada mãe, valeu... Eu não sou mais criança sabe, mas acho bom...
Foi caindo no sono lentamente. A mãe só observava agridocemente. A bem sucedida, auto-suficiente Clara. Só gente muito orgulhosa somatiza saudade e nostalgia.